Mauro Ventura
A coluna é publicada aos domingos na Revista O GLOBO
Duas águas e a conta com Virgínia Portocarrero
A enfermeira militar que, há 70 anos, foi uma das pioneiras na Segunda Guerra, será homenageada em congresso
Na terça-feira, dia 8, a carioca Virgínia Maria Niemeyer Portocarrero será homenageada no Congresso Brasileiro de Enfermagem, no Rio. Há 70 anos ela viu no GLOBO uma chamada convocando voluntárias para servir como enfermeiras da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial. Pegou seus documentos e se inscreveu. Das 103 candidatas, passaram 67, que formaram o primeiro grupo feminino de enfermagem do Exército. Junto seguiram ainda outras seis da Aeronáutica. Às vésperas de fazer 96 anos, dia 23, ela diz que sua memória anda um pouco falha. Mas ainda guarda várias recordações do cotidiano no front — e quando precisa de ajuda para lembrar de algo recorre à pesquisadora Margarida Bernardes, da Uerj, presente à entrevista e autora de uma importante dissertação sobre a participação do grupo de enfermagem na guerra. Solteira, com uma filha adotiva, Daisy, Virgínia foi aos pouco perdendo o contato com as outras enfermeiras militares. “Procurava e ouvia: ‘Morreu.’ Até que não procurei mais. Só procurava defunto”, diz, com bom humor.
Como seus pais reagiram à sua ida à guerra?
virgínia portocarrero: Sou de uma família de militares. Queria ser militar, mas não era permitido. Cursei Enfermagem e, quando o Brasil entrou na guerra, achei que tinha que ir. Minha mãe era neta do marechal Conrado Jacob Niemeyer, que foi à Guerra do Paraguai. Mesmo assim, não contei a eles quando me inscrevi porque sabia que ela seria contra. Tanto que ficou atordoada quando viu no jornal meu nome entre os convocados. Pediu para um primo general impedir minha ida. Por isso, fui reprovada no exame médico. Meu pai (o general Tito Portocarrero) foi ver o que houve e escutou: “A sua senhora é que pediu.” Ele mandou tornar sem efeito a decisão. Me disse: “Você fez o que tinha que fazer. Um Portocarrero não foge às suas obrigações.” Fomos quatro Portocarrero à guerra. Eu e três primos de primeiro grau criados comigo. Um se feriu, com 68 estilhaços de granada.
A ida de mulheres à guerra foi bem-recebida?
Fomos muito combatidas, inclusive pelo povo, que achava que não tínhamos que nos meter, que devíamos ficar cuidando da família. Dona Santinha (mulher do marechal Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra) também era contra e disse que isso era coisa de moça que não prestava. Na cabeça dela, queríamos ir à guerra para namorar, arrumar um namorado militar.
O uniforme que ela mandou fazer para vocês desagradou...
Segundo a (enfermeira) Bertha de Moraes, parecia espantalho de arrozal. Era um vestidão solto, de pano cinza escuro, com um lenço na cabeça, como de faxineira. Depois deixaram o uniforme das americanas. Nossas calcinhas eram abaixo do joelho, nunca vi nada igual, nem em bisavó minha. E o sutiã era verde-oliva. Tínhamos vergonha de tomar banho com as americanas.
Como foi a volta das enfermeiras ao Brasil?
Me apresentei à Diretoria de Saúde. O diretor nem levantou os olhos e disse que eu seria desligada. Sem agradecimento, aperto de mão ou abraço. Foi um gesto deselegante, de pouco caso, tive vontade de chorar, mas não dei maior importância, tinha orgulho de ter cuidado dos soldados. Após 12 anos, nós acabamos reintegradas, como segundo-tenente. Depois virei capitão.
Fale um pouco do cotidiano no front.
Fiz parte do Destacamento Precursor da FEB, formado pelas cinco primeiras enfermeiras a desembarcar na Itália. Eu me locomovi por 11 hospitais de campanha, porque, quando a tropa avançava, nós avançávamos. Atendíamos soldados de todos os países, até alemães, que eram muito disciplinados. Na hora da medicação, deitavam na cama, aguardando. Os brasileiros fugiam um pouco dos remédios. Eram maravilhosos. Corajosos, não se queixavam, queriam ter alta logo para voltar à batalha. Eu não considerava o que fazia trabalho. Era um presente do céu ter a oportunidade de tratar deles. Não fui heroína, cuidei de heróis.
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